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Candomblé com sotaque francês

Entrevista de Pierre Verger por Maria José Quadros publicada no jornal O Globo 16/08/1992

Às vésperas de completar 90 anos, o etnólogo francês Pierre Verger, radicado na Bahia há quase meio século, se prepara para dar mais uma importante contribuição ao estudo da cultura afro-brasileira. Com a  ajuda de uma especialista em botânica, ele prepara seu vigésimo livro, um trabalho inédito sobre as plantas medicinais usadas na costa do Benin, na África, e na Bahia, que deverá ser publicado também na Inglaterra e França.

O livro será lançado no final do ano, coincidindo com a inauguração da sede definitiva da Fundação Pierre Verger, que abrigará todo o acervo do etnólogo,há anos disputado por seis universidades da Europa, Estados Unidos e África. São 60 mil negativos fotográficos, três mil volumes de livros e documentos, um catálogo com 3.500 plantas medicinais e mais de mil horas de gravações sobre a cultura oral iorubá. Tudo isso está amontoado na modesta casa onde ele mora há 32 anos, na ladeira Alto do Corrupio, em companhia apenas de um gato com nome de filósofo – Jean-Jacques Rousseau. Todos os parentes próximos de Verger já morreram.

Nascido Pierre Edouard Leopold Verger, em Paris, em uma família abastada, o etnólogo desprezou o cargo de diretor na empresa gráfica do pai, quando tinha 30 anos, em troca da liberdade de sair fotografando povos e costumes pelos cinco continentes. Considerado um dos maiores fotógrafos do mundo na época, fez vários ensaios par o Museu do Homem, de Paris, deu a volta ao mundo como fotografo do estinto jornal “Paris Soir”, virou correspondente de guerra da revista americana “Life”, Segunda Guerra e foi um dos primeiros fotógrafos da conceituada agência francesa Magnum.

Verger correu mundo sem pressa, até “descobrir” a  África, onde passou anos estudando a cultura iorubá na Nigéria e na costa de Daomé, hoje República do Benin. Sua intimidade com a cultura daqueles povos, de onde saiu a  maioria dos escravos que vieram para a Bahia, fez com que adotasse o nome africano Fatumbi, passando a se chamar Pierre Fatumbi Verger. Logo depois fez uma nova descoberta: a Bahia, de onde não mais saiu.

Verger já faz planos para novos projetos: vai ordenar os quilômetros e quilômetros  de fita gravada com importantes registros sobre cultura oral que conseguiu em suas viagens pela África. Antes, em setembro, irá à França participar de um colóquio de antropólogos, onde falará sobre a sua convivência de dois meses no continente africano com o famoso antropólogo Roger Bastide, que o orientou em suas pesquisas. Filho de Oxaguian- Orixá jovem, que se caracteriza sobretudo pelo apego à liberdade e o espírito de justiça – Verger recebeu o título de Doutor pela Sorbonne e se tornou consultor do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, tendo cursado apenas o antigo liceu.

O Globo: De que se trata o livro que o senhor esta escrevendo? 

Pierre Verger:  O livro é sobre o trabalho de plantas e especialmente entre os iorubás e seus descendentes aqui na Bahia. Ainda não escolhi o título. São plantas medicinais e litúrgicas, mágicas também. Algumas são encontradas no Brasil. É sobre a medicina que se usa nas aldeias do Benin e da Nigéria, de onde saíram os negros que vieram para Bahia. As pesquisas cientificas com plantas acontecem em todo mundo. Os laboratórios sempre estudam a composição das plantas, partem do que fazem as pessoas que têm conhecimento prático para chegar aos medicamentos. Os remédios sempre imitam a natureza. Já há farmacêuticos e outros especialistas interessados. O livro trará pouco mais de 400 fórmulas, descritas em quatro línguas. No total recolhi mais de duas mil combinações de plantas.

G: Como o senhor conseguiu recolher tantas fórmulas?

PV:  É difícil conseguir informações desse tipo quando se quer. Eu aprendi sobre o assunto porque não queria saber. Cheguei a África, onde terminei vivendo 17 anos  como fotógrafo. Acontece que para fazer boas fotos é preciso se deixar esquecer no lugar, esquecer de onde a gente veio, viver normalmente entre o povo da terra, para que tudo fique natural.  É uma atitude um pouco passiva, a mesma que tive em minhas pesquisas. 

G: A passividade ajuda o pesquisador?

PV:  No meu caso, sim. Minha aproximação com os problemas é diferente do que os antropólogos em geral costumam fazer. Estes sempre têm uma tese, um plano de trabalho, estão procurando alguma coisa em particular. Usam sua energia  para tentar conseguir as informações de que precisam, o que faz com que as pessoas automaticamente se fechem. Eu não estava interessado em coisa alguma em especial, não vivia fazendo perguntas. Mas terminei me transformando em aluno dos babalaôs, que são os “pais do segredo”.

G: Em que consiste o segredo?

PV:  São as informações e o conhecimento da cultura iorubá, que só se transmite oralmente. Eu fui aceito como uma espécie de aluno, tinha não só o direito mas também o dever de aprender. Isso aconteceu na Nigéria e no Benin, inclusive numa pequena cidade chamada Kêto, de onde se originou a maioria dos terreiros de candomblé da Bahia. Quando encontrava coisas interessantes, eu anotava. Com os babalaôs, me iniciei no sistema de adivinhações dos iorubás, que se chama Ifá. É por isso que passei a me chamar Fatumbi, nome que significa “renascido pela graça do Ifá”.

G: Há quem diga que as novas gerações de negros baianos começam a  perder o contato com suas raízes africanas, que estão mais voltados para o que fazem os negros em outras partes do mundo. O senhor concorda?

PV:  Não há um Brasil, são muitos brasis. Reconheço que os estados brasileiros, que culturalmente são diferentes uns dos outros, começam a ficar parecidos, misturados, talvez por influência da televisão. Mas a Bahia tem um sabor particular, essa influência muito forte dos descendentes de africanos da costa do Benin. Essa terra ainda é muito diferente do resto do país. O que me atrai aqui é justamente essa mistura cultural, que faz com que na Bahia possam conviver pessoas de origens diferentes, sem problemas. Há problemas começando agora, mas são coisas que vêm de fora.

G: Que problemas são esses?

PV:  Problemas inter-raciais, porque a Bahia passou a ter elementos que não tinha no passado. Elementos que vêm um pouco da atitude de certos intelectuais que vivem falando em racismo. Só pelo fato de falar no assunto, ele começa a se tornar realidade, começa a se criar uma situação que não existia antes. Porque, afinal, a Bahia é o lugar do mundo onde encontrei as relações raciais mais fáceis. Aqui não existem bairros negros, aqui se chama um amigo de “meu nego”para ser gentil, negro é uma palavra carinhosa. Isso se baseia no fato dos negros, mestiços e brancos terem uma vida em comum. Não é que o racismo não exista, mas a sociedade baiana discrimina menos do que resto do mundo, o que já é um progresso. Agora, tem aquela gente que não quer parecer negro, quer ser mais clara, ter cabelo liso... Isso é uma piada. Quando cheguei a Bahia, em 1946, nem notei que aqui vivia também gente branca. Só descobri que tinha branco tempos depois, quando tive de ilustrar um livro de um professor da Universidade Federal da Bahia, sobre elites de cor da cidade, publicada pela Unesco. O que eu acho é que n Bahia há um certo prestígio em ser negro, por causa do candomblé.

G: De que forma o candomblé confere prestígio ao negros baianos?

PV:  O candomblé é admirado e respeitado também pelos brancos, e isso faz com que se tenha um certo orgulho de ser negro. Os negros ligados o candomblé não sofrem preconceitos raciais. Veja o caso de uma vendedora de acarajé: essas mulheres geralmente são filhas de santo, e por isso o pessoal vai lá com um certo respeito, as pessoas ligadas à seita beijam a sua mão. Cria-se uma atmosfera de apreço  pela gente de origem africana.

G: O senhor noa vê nisso algum traço de folclorização da cultura negra?

PV:  Não acho que seja folclore, porque a cultura negra está presente na cidade. Alguns dos maiores edifícios de Salvador têm nomes de orixás – Iemanjá, Xangô, Oxaguiam, Oxalufã. As pessoas que vivem ou trabalham nesses edifícios estão contentes com isso. Coisas desse tipo fazem com que os negros se sintam bem em sua pele. Pode haver algum tipo de racismo, mas que não se deve esquecer que existe também essa valorização da cultura chegada com os africanos.

G: O senhor é muito respeitado nos terreiros. O candomblé é a sua religião?

PV:  Não sou muito religioso,  por temperamento.  O que me interessa é o papel que tem o candomblé ao conferir dignidade aos descendentes dos escravos. Aqui eles chegaram a ser gente mesmo, gente respeitada por suas próprias tradições.

G: Como um francês, sem qualquer raiz racial na África, pode participar das cerimônias do candomblé?

PV:  Mesmo para as pessoas que não têm origem africana, o candomblé é importante, porque permite  que elas sejam elas mesmas, em vez de adotar uma forma de viver que nada tem a ver com sua natureza. Há uma coisa muito interessante no candomblé: em princípio, um orixá é um antepassado da família, que às vezes se apodera da pessoa, em então ela cai no santo , com se diz , sem fingir, numa possessão verdadeira. Quem não tem sangue africano, como eu, infelizmente não é possuído pelo orixá. Há um caso único, que noa sei explicar, de uma pessoa sem raízes africanas que pe possuída pelo santo. É uma francesa Giselle Cossard, que é mãe de santo de um terreiro muito respeitado, nos arredores do Rio. Há pessoas sem sangue africano que também caem no santo, entram em transe. Mas é um transe de expressão, e não de possessão.  O orixá é uma espécie de arquétipo do comportamento da gente. Quando se apossa de uma pessoa, ela revela o que está em seu inconsciente, passa a exprimir sua personalidade verdadeira.

G: Então o transe, no candomblé, funciona como uma terapia psicanalítica?

PV:  O candomblé é muito importante do ponto de vista da psicanálise, com uma grande vantagem. Na psicanálise há o psicodrama, as pessoas são levadas a representar publicamente o que está escondido em sua personalidade, mostrar seu lado mais vergonhoso. Isso é horrível. No candomblé é o  contrário, isso ocorre em clima de festa, a gente pode mostrar o que é e ser admirado, porque afinal de contas não é a pessoa que está fazendo ou dizendo aquelas coisas, é o orixá.

G: Fale sobre sua juventude. A efervescência cultural na França das décadas de 20 e 30 não o atraía?

PV:  Sempre tive muita curiosidade por tudo que era diferente do que vivi na minha infância, no meu país. Depois, não gosto muito de intelectuais, eles parecem dondocas. Para viver no meio deles é preciso se expressar artificialmente, procurar as palavras. Com a gente comum é muito mais natural. Eu mesmo nunca quis escrever. Só comecei porque tinha recebido uma bolsa de estudos do Instituto Francês da África Negra, e o diretor exigiu que eu escrevesse sobre minhas pesquisas. Foi aí que comecei a envenenar minha vida, porque tinha de tentar com palavras o que via. Antes, bastava registrar em fotografia.

G: Às vésperas de completar 90 anos, a idade o preocupa?

PV: Não, não vejo grande diferença. É chato, porque até há pouco tempo eu conseguia me locomover melhor. Gostaria de ter mais agilidade. Às vezes esqueço o nome das pessoas, o que também é chato.

G: O seu trabalho é reconhecido internacionalmente, mas o senhor vive em pobreza quase absoluta. A Bahia o trata mal?

PV:  Não vejo isso, pelo contrário. Não acho que viva mal. Tenho liberdade para fazer o que quero, comida, roupa e uma cama para dormir. Querer possuir mais do que isso é estupidez.