• FaceBook
  •   
  • Twitter

O toque Verger

Estudo da obra fotográfica de Pierre Verger
Cláudia Maria de Moura Pôssa

Apresento aqui um resumo dos resultados da pesquisa desenvolvida para elaboração de tese do programa de doutorado “Fotografía y Vídeo”, da Facultat de Belles Artes, Universitat de Barcelona, tese sob a orientação da Dra. Maria Dolors Tapias Gil, defendida em janeiro de 2007. O trabalho foi desenvolvido tendo como foco a obra fotográfica de Pierre Verger. Em uma primeira etapa, investigou-se a iniciação do fotógrafo, buscando suas raízes estéticas e visando compreender o processo de trabalho do fotógrafo e as condições de origem de seu olhar fotográfico. Em uma segunda etapa a investigação deteve-se na sua trajetória profissional, na produção de Verger enquanto repórter fotógrafo, buscando compreender sua participação nas nascentes agências fotográficas dos anos 1930 e 1940. Nessa etapa interessou conhecer os meios em que veiculava suas imagens, tanto revistas como jornais. Enquanto repórter, Verger atuou de duas formas. Primeiro, viajando por diversos países, sem se vincular a nenhuma empresa editorial fixa, depois, como repórter da revista O Cruzeiro. A seguir, a pesquisa voltou-se para a análise do material publicado em livros, na forma de ensaios fotográficos. Para tal, foram escolhidas duas publicações iniciais, dos anos 1930, South Sea Islands e Exposition 37, e três publicações da década de 1950, período crucial na trajetória de Verger, Dieux d’Afrique, Bahia de tous les poètes e Indiens pas morts. A análise desses ensaios fotográficos, trabalhos que guardam características bem distintas e têm diferentes concepções editoriais, permitiu estabelecer contrapontos com outros fotógrafos e, assim, compreender melhor sua trajetória. Finalmente,  buscou-se caracterizar o trabalho fotográfico de Verger analisando o que se denominou “toque Verger” e recuperando, por meio de seus depoimentos e imagens, o que o fotógrafo pensava sobre a fotografia.

A matéria-prima do trabalho fotográfico de Pierre Verger é o cotidiano material, simbólico e imaginário dos homens das mais diversas culturas, tendo optado por retratar mais especialmente a cultura negra da África e do Brasil. No decorrer da investigação de doutorado, a produção de Pierre Verger, um fotógrafo viajante par excellence, foi analisada passo a passo. Sem querer desmerecer outras facetas do autor, enquanto  antropólogo,  etnógrafo, historiador, interessou à pesquisa a sua obra fotográfica, que totaliza um acervo de cerca de sessenta e dois mil negativos, em sua grande maioria realizada entre 1932 e meados da década de 1950, período em que se pode dizer que  atuou quase exclusivamente como fotógrafo. Os seus trabalhos fotográficos foram agrupados, bem como foram identificados os principais marcos do seu caminho. Além de documentais, suas imagens possuem dimensões estéticas, políticas e afetivas que não podem ser entendidas de forma isolada, e exigem pensar sobre a questão da relação entre o fotógrafo, a obra e os contextos culturais envolvidos. Só se pode compreender a fotografia de Verger a partir das múltiplas relações e conexões que considerem simultaneamente aspectos discursivos, sociais, científicos e subjetivos, pois esses atuaram ao mesmo tempo.

Um primeiro resultado do estudo foi recuperar os momentos de formação do fotógrafo, com o objetivo de compreender a quais demandas respondeu o seu trabalho, tanto demandas pessoais quanto demandas coletivas, relativas ao grupo de pessoas com as quais convivia e ao contexto cultural ao qual pertencia. A geração de Verger foi marcada pelas vanguardas européias e, para se ter uma leitura mais aguda da sua produção fotográfica, importa entender esse cenário de base. A obra de Verger é uma poderosa síntese de impulsos e idéias artísticas diversas, então em curso. Em linhas gerais, foram percebidas três influências na sua formação como fotógrafo: experiências com o grupo que se reunia em torno de personalidades ligadas ao surrealismo e seus desdobramentos dissidentes, o trabalho junto ao grupo de etnólogos do Musée du Trocadero, mais tarde Musée de l'Homme, e a sua participação junto ao grupo de artistas gráficos, arquitetos e fotógrafos de studios relacionados com a nouvelle vision fotográfica francesa. Foram consideradas as implicações desses três vetores na produção fotográfica de Verger. Uma afinidade essencial entre as tendências é que em seu bojo se debatia a função da imagem enquanto discurso sobre o outro. Verger soube equacionar essa confluência, à sua maneira, implicando numa articulação arriscada e difícil entre a linguagem poética e a experiência de um mundo múltiplo.

Quanto ao surrealismo francês, havia valores no movimento com os quais Verger se identificava e que estão marcados em sua obra, tais como a presença de um “pessimismo produtivo”, a valorização operativa do cotidiano, a busca da “beleza convulsiva”, do “acaso objetivo” e da “adivinhação”. Já em sua iniciação fotográfica estava em contato com procedimentos visuais surrealistas, por intermédio de seu colega e iniciador, Pierre Boucher, cujo trabalho fotográfico mostrava de modo claro marcas surrealistas. É importante ressaltar que, ainda que se possam identificar influências surrealistas na formação de Verger, ele jamais aderiu oficialmente ao movimento, pois não admirava as concepções intelectuais predominantes entre os integrantes do surrealismo. Sua influência vinha de um “rameau originel du surréalisme”, ligado a Prévert que aportou ao movimento um tom menos hermético e que, ao contrário dos surrealistas do grupo de Breton, tinha repugnância a teorizações. Prévert colaborou com Georges Bataille na revista Documents e fez parte das atividades de “contre attaque” do grupo de Bataille, organizado em oposição ao surrealismo oficial de Breton. Pode-se relacionar indiretamente Verger com esse grupo dissidente que se reuniu na revista Documents, refúgio de numerosos ex-surrealistas e surrealistas excomungados pelo ramo oficial, grupo ao qual se vinculava Prévert e Michel Leiris. Se para os surrealistas do grupo ligado a Breton a imaginação é o que importava,  para os integrantes da Documents, a realidade já tinha componentes suficientes para estudo. Interessava a Verger, mais que o surrealismo onírico, a realidade em suas estranhas apresentações . Como Brassaï,  Verger poderia ter dito que “rien n’est plus beau que la réalité”. Do surrealismo Verger reteve a percepção – coincidindo nisso com Cartier-Bresson – que a poesia está nas ruas. Em sua fotografia compareceu a idéia surrealista de abolir os limites entre arte e vida, entre objetos e acontecimentos, entre o intencional e o fortuito, entre o profissional e o amador, entre o nobre e o vulgar. Verger se relacionou com o chamado Groupe Octobre, grupo de teatro militante, de esquerda, reunido em torno de Prévert, que atuou de 1932 a 1936. A influência de Jacques Prévert foi mais intensa na época em que Verger se iniciava na fotografia. O convívio com o grupo de Prévert e com o correlato Groupe Octobre foi uma ocorrência mais diletante, menos profissional, que as demais influências, mas que teve conseqüências ativas posteriores e duradouras, sendo decisiva para a concepção estética de Verger. A proximidade de Verger ao grupo indica que partilhava com os integrantes de uma visão crítica da sociedade. Essa postura crítica também pode ser vista na sua vinculação a uma outra associação, a AEAR, Association des Écrivains et Artistes Révolutionnaires, grupo  nascido de idéias de surrealistas, e ligado ao partido comunista. Os fotógrafos ligados à AEAR reconheciam na fotografia não somente uma dimensão criativa individual, mas também uma dimensão coletiva e política. A fotografia era vista como forma de experimentação plástica, mas também como uma arma para a denúncia social.

Quanto ao contato de Verger com uma outra variante da vanguarda francesa, a nouvelle vision, foi essencial compreender sua participação no Studio Zuber. O estúdio implicava em uma prática múltipla de meios e linguagens. Agrupava uma equipe de pessoas amigas que ali faziam trabalhos gráficos e fotográficos comerciais, basicamente publicitários, enquanto se dedicavam a experimentações e buscas artísticas pessoais. A publicidade estava em forte correlação com a imprensa gráfica e com as fotos de reportagem. No estúdio, Verger  atuou junto a figuras como Pierre Boucher e René Zuber, que mesclavam diferentes técnicas, atuando simultaneamente como fotógrafos e como grafistas. Da parte de Boucher, suas idéias serviram de referência para Verger em vários aspectos, dentre os quais o de que a fotografia era vivenciada como uma viagem coletiva que captava algo em movimento. Outro aspecto foi uma certa afinidade com a abordagem do corpo humano, tratado, nos nus de Boucher, sem preconceito. Da parte de Zuber, um dos fotógrafos franceses mais atingidos pelas idéias da nova objetividade alemã, Verger captou uma certa concepção gráfica tal como se revelava nas fotos de objetos e detalhes. E é a partir dessas influências da nouvelle vision que se deve entender o interesse fotográfico inicial de Verger: “Clichés représentaint uniquement des gros plans, des détails pris avec un Rolleiflex”. Nessa relação inicial com  a fotografia, Verger estudou os efeitos fotográficos da luz,  vivenciando uma experimentação de texturas e brilhos, o que compôs uma fase de alteração do olhar, que chamou de  “olhar míope”.

Quanto à etnografia, a matriz de formação intelectual de Verger esteve ligada às idéias da equipe que se reunia no Museu do Trocadero, depois intitulado Musée de l’Homme. A ligação de Verger com a antropologia pode ser constatada bem cedo, aparece quando ele atuou como colaborador do museu e conviveu de perto com o grupo de estudiosos, como encarregado do laboratório fotográfico. Verger se aproximou dos estudos culturais no Musée de l’Homme, em projeto comum com Métraux, Leiris e outros. A questão do documento antropológico, de sua coleta e conservação, ocupou um espaço central para o futuro do fotógrafo. Aqui novamente pode ser lembrada a revista Documents que reunia não só dissidentes do surrealismo mas, também, os etnógrafos da equipe do museu. Outra questão importante advinda do debate antropológico era a das viagens de coleta de material de estudo. A idéia de viajar não turisticamente, pois assim se fariam viagens “sem coração, sem olhos e sem ouvidos”, mas viajar etnograficamente para alargar o universo do humano e assim esquecer os hábitos medíocres da sociedade burguesa européia. As cartas e fotos que trocou com seus amigos mostravam como sua busca era comum a toda uma geração “surrealizada”. Nas viagens, Verger, fotograficamente, alargava seu olhar, consolidava a comunhão com a cultura local, expressava sua admiração pela diferença e sublinhava a dignidade dos povos mais simples. Como se por meio das fotos existisse uma busca de contato com o Outro, que viria a constituir um traço do seu estilo pessoal.

A partir dessas considerações sobre a formação estética de Verger, buscou-se compreender seu trabalho como profissional, sua atuação como repórter e sua participação na formação de agência composta  por fotógrafos que atuavam de forma independente. Verger começou a fotografar profissionalmente em 1934. A profissionalização ocorreu via influência do Studio Zuber, pelo contato de Verger com o jornal  Paris-Soir. Verger iniciou-se como repórter de uma maneira surpreendente: foi convidado para integrar a equipe enviada pelo jornal para uma viagem ao redor do mundo. Essa primeira experiência foi bastante decisiva para o fotógrafo no sentido de crítica do métier do repórter e de adoção de uma postura de independência em relação aos órgãos de imprensa. Recusou posteriormente convites de empresas jornalísticas de peso para manter-se fiel aos princípios que formulou naquele momento quando sofreu dificuldades e, inclusive, foi sabotado pela equipe de fotógrafos vinculados ao jornal. Após esclarecidos os fatos, Verger publicou nesse jornal citado uma série de fotos, como uma espécie de compensação pelo ocorrido, intitulada «Londres Secreta», em 1934. Esse trabalho de Verger chama a atenção por se tratarem de fotos ambientadas, que recriam a atmosfera noturna de Londres da época de  Jack the Ripper, onde a influência do mundo surrealista era clara, havendo um componente pessoal do fotógrafo de encarar imagens sobre a morte. São das poucas fotos de Verger montadas a partir de uma situação claramente teatralizada para  registro fotográfico.

Ainda em 1934, dois fatos importantes marcaram a estréia de Verger no mundo profissional. Primeiro, as fotos publicadas no jornal inglês Daily Mirror, assinadas pelo sugestivo pseudônimo de Lensman, viabilizaram a primeira viagem à África. Segundo, e mais importante, o fato diretamente vinculado ao Studio Zuber, foi a participação na fundação de uma agência de fotógrafos independentes, a Alliance Photo, juntamente com Pierre Boucher, René Zuber, Emeric Feher e Denise Bellon. A agência Alliance Photo, que atuou de 1934 até 1940, foi uma das primeiras agências fotográficas criadas em Paris, de grande pioneirismo na maneira de atuar dentro do meio da fotografia comercial. Aos fotógrafos da equipe inicial da Alliance Photo se juntaram outros, alguns de forma temporária, que utilizavam a agência para publicar trabalhos, como Robert Capa, Chim e Henri Cartier-Bresson. O agenciamento permitia que o fotógrafo empreendesse as grandes viagens de pesquisa e de reportagem. Era uma sociedade organizada para a distribuição de imagens, representando para Verger a combinação do imprevisto e criativo com o organizado e estratégico. A divisão de trabalho dentro da agência deslocava o encargo da comercialização para pessoas amigas e competentes. O fotógrafo podia ter liberdade para fazer viagens ao redor do mundo e realizar  seus ensaios fotográficos recebendo, por meio da agência, pagamento por isso.

Verger era fotógrafo e sócio da agência. A reputação da agência cresceu a cada dia graças à qualidade das imagens, à experiência dos componentes e à ajuda de jornalistas influentes. Essa reputação pode ser evidenciada pelo impressionante número de imagens publicadas pela imprensa da época que levavam a assinatura de algum dos membros da Alliance. Para a avaliação da capacidade de distribuição das imagens da Alliance, dois fatores tiveram que ser levados em conta inicialmente. Primeiro, a própria produção dos fotógrafos fundadores que compuseram o acervo inicial; segundo, a comercialização dessa produção, via agência, atendendo uma demanda de imagens por parte da imprensa e do mercado de informações da época. A produção dos fotógrafos fundadores vinha de uma nova maneira de praticar a fotografia, diferente da tradicional que era pautada nas escolas de beaux arts, de gravura e de pintura e que  perpetuava a representação estática. As imagens veiculadas pela Alliance Photo eram notavelmente modernas. Fixaram gestos, atitudes e momentos que simbolizavam os desejos, escolhas e esperanças do homem do século XX. Algumas das fotos ainda hoje são, sem dúvida, surpreendentes.

Contando com o agenciamento, Verger podia continuar suas viagens, mesmo que muitas vezes com alguma dificuldade. Como um poeta “desterritorializado” e fotógrafo viajante, Verger encontrou na fórmula da agência o ponto de contato profissional  que fornecia os recursos para suas expedições. Para determinar toda a importância que as viagens exercem no desenvolvimento do trabalho fotográfico de Verger, é bom aqui apontar que, à medida que construiu sua obra e  seu estilo, ele desenvolveu todo um sistema de vida, toda uma ética. Em suas viagens, Verger entrou em contato com outros povos e culturas e ampliou seu universo cultural. Usou a fotografia como uma espécie de passaporte que lhe permitia a introdução no mundo do outro e acumulou uma documentação singular que evita os tópicos e estereótipos. A sede da empresa era Paris, que funcionava como uma referência, um local para o qual Verger retornava periodicamente.

A guerra provocou mudanças na questão profissional. Com a desarticulação da Alliance Photo, Verger viu-se compelido a vincular-se profissionalmente a outras organizações. Estando no Peru em 1942, trabalhou como fotógrafo do Museu Nacional de Lima, fez fotos para Rubber Development Corporation, assim como para a Cerro de Pasco Cooper Corporation, empresas respectivamente de borracha e cobre. No pós-guerra, participou de uma nova agência, a ADEP, Agence de documentation et d’édition photographique, ao lado de outros antigos integrantes da extinta Alliance Photo. Verger, mesmo tendo ficado vinculado à ADEP, chegou a ter fotos veiculadas pela Magnum, agência então fundada por amigos e com a qual manteve contato.

Como repórter, a experiência brasileira importante de Verger  foi o trabalho na revista O Cruzeiro. Trabalhar na revista foi a confirmação de suas investidas anteriores como repórter, o que resultou na produção significativa de mais de 60 reportagens. Fez fotos do país e do povo brasileiro, mais do que fotos de atualidades. Suas fotos mostravam o dia-a-dia da população e do local fotografados. Basicamente, Verger foi um observador, mostrando um olhar atento ao outro, atento às diferenças e singularidades culturais. Suas fotos retratavam a cultura popular, as danças, a comida, as feiras, o carnaval, o maracatu, o bumba-meu-boi, os barcos, os pescadores, as festas religiosas, a religiosidade afro-brasileira, os carregadores, o barroco do casario etc. Eram fotos feitas em lugares variados, como Pernambuco, Maranhão mas, principalmente, fotos da Bahia. É significativo que a maior parte das fotos fosse do povo negro baiano, mais especificamente de Salvador. Verger inicialmente publicou fotos em reportagens escritas por outros autores. A escolha dos temas era de Verger, ou seja, as imagens eram os elementos geradores das reportagens. As fotos resultavam de um projeto em que o fotógrafo fixava, ele mesmo, seu objetivo, não eram simplesmente um encargo da revista para ilustrar um texto. Na primeira fase de sua participação na revista, Verger fez uma série de reportagens com fotografias em preto e branco. Numa segunda fase, já não atuando exclusivamente como fotógrafo mas também como pesquisador, buscando controlar mais o contexto de publicação e vincular as fotos com suas idéias, Verger escrevia os textos ou escolhia textos de outros  autores. Permaneceu como repórter enquanto foi possível manter independência e concepção própria das imagens.

A seguir, passou-se para o estudo dos ensaios fotográficos, visando a uma leitura formal da obra de Verger,  com uma observação pormenorizada de algumas imagens selecionadas. Os cinco ensaios escolhidos para análise permitiram  a obtenção de uma perspectiva que vai desde as publicações iniciais da década até os trabalhos resultantes de fotos da década de 50.

No livro South Sea Islands percebe-se o resultado de uma experimentação de vida e de olhar original. As fotos foram feitas na viagem à Polinésia, onde o fotógrafo mesmo ainda não tendo pretensão profissional, apresenta a força do seu olhar, sob uma nítida influência das vanguardas. Alguns ângulos de tomada são bastante ousados e inusuais e as fotos têm uma preocupação estética forte. Algumas fotos captam algo de insólito, fazem pensar em composições delirantes de um surrealismo discreto mas profundamente arraigado. As fotos, como um diário de viagem em imagens, narram um descobrimento da alteridade cultural. Verger estava então descobrindo o mundo em busca de referentes, permitindo-se não ter fronteiras fixas. Os efeitos luminosos foram obtidos em cenas de rua, em cenas com luz natural, o que implica uma certa perícia técnica. É um olhar de descoberta, mais que uma observação fria. Um olhar educado esteticamente onde se nota a interferência da cultura de origem do fotógrafo. Paradoxalmente, uma foto testemunha, foto documentalista. Uma das fotos que se destacam no livro, ainda mais se considerada a época em que foi feita, é a foto do amigo, o pintor Eugéne Huni. O ângulo de tomada da foto é extremamente ousado, e ainda hoje causa surpresa sua contemplação. Nos anos 30, quando foi realizada, era realmente um olhar experimental.

Já o Exposition 37 tem sua importância por tratar-se do livro oficial da Exposition Universelle de 1937, publicação portanto de bastante visibilidade. O evento apresentou para a fotografia um interesse contrastado: triunfante, a fotografia estava unipresente e bem representada ao mesmo tempo. Apresentada nos pavilhões dos diversos países, mostrava avanços científicos, técnicos, sociais, a vida cultural, turística, artística. Mais que demonstrando, enfatizando o caráter de documento. Também no exterior, servia de decoração e apelo, apresentada em formatos gigantes e em fotomontagens. Esteticamente, a exposição evidenciava o papel ideológico da fotografia. A fotografia foi utilizada como uma linguagem universal e uma forma de arte devotada à comunicação de massa e à propaganda; a fotomontagem usada a serviço da indústria e da publicidade. A fotografia, tal como foi usada e divulgada na “Expo”, mereceu uma crítica cortante da parte de Gisèle Freund, que denunciou o uso massivo e abusivo da imagem fotográfica, com finalidade política. Com o álbum, Verger estava dialogando com os fotógrafos da nouvelle vision. É necessário no entanto, levando em conta o caráter comercial do trabalho executado por Verger, relativizar sua intenção estética.  Com “Pavillon Photo-Cine-Phono”, Verger faz metalinguagem com a história da fotografia. A presença de parte da estrutura metálica da torre Eiffel, na foto, parece ser uma citação à obra de Germaine Krull. O livro Exposition 37 não é colocado pelo fotógrafo como destaque em sua obra.

O livro Indiens pas Morts é, dentre os cinco, o que se caracteriza como obra coletiva. O livro permite uma comparação entre as produções de Verger, Frank e Bischof. São fotos sobre os índios da América do Sul, descendentes dos Incas. A maioria das fotos apresentadas no livro é de Verger que é quem mostra maior variedade no objeto fotografado, fotos que mostram das ruínas incas ao retrato. Nas fotos de Verger, muitas vezes aparecem as máscaras com grande destaque. Observando-se mais de perto o conjunto das imagens do livro, evidencia-se a  diferença entre as fotografias dos três autores de Indiens pas Morts. Para Frank interessa, no ato fotográfico, registrar a subjetivação do autor, a forma como vivencia a viagem. Para Bischof, a expressão estética individual centraliza seu interesse, por isso fazia esboços desenhados das cenas. Bischof pretendia destacar a sua assinatura na imagem. Para Verger a proposta consistia em obter registros da vida cultural corrente como se o fotógrafo não estivesse, de maneira nenhuma, interferindo nas cenas. O dado objetivo para Verger era o suficientemente coerente para justificar-se por si próprio. Verger, dentre os três, é o que procura uma maior despersonalização na fotografia. Verger é o que mais busca mostrar rituais, fotografando festas, máscaras e gente em oração, cemitérios, cenas mortuárias. Fotos do povo índio, imerso na cultura local, onde está presente o mais característico do lugar, fotos do que está mais “territorializado” e é o mais singular. A resistência dos índios na América, com tradições bem vivas e raízes antigas, é mostrada com veemência. As fotos tentam registrar algo que está de certo modo ameaçado de desaparecer e têm um rastro de sombra e morte apesar da resistência presente nas festas e marcada nas máscaras como o próprio título do livro sugere “os índios não estão mortos”. O tema da morte aparece insistentemente nas fotos de Verger, assim como o religioso e o profano. A morte simbolicamente vai ser retratada em outra imagem que mostra um homem adormecido em uma escadaria, em pleno dia. Um tipo de foto que Verger gostava de repetir, atraído talvez pelo gesto de desprendimento de qualquer ato produtivo. O fotógrafo dispensa então completamente a permissão do outro para um registro em que penetra a intimidade sem ser percebido.

O Bahia de tous les Poètes traz textos poéticos, traduzidos do português para o francês, mostrando a Bahia ao estrangeiro, apresentando aspectos gerais do estado, apresentando uma visão poética da Bahia através de imagens do casario, das danças, da pesca, do interior, das pessoas, da mescla cultural. Aparecem fotos tanto da Bahia capital, como fotos do interior do estado, interpretações da história e cultura do Brasil e da Bahia. Os textos comentam as fotos, as imagens poéticas são o tema central do livro. O livro permite ver Verger como um poeta que trabalha com imagens líricas. Nesse livro é Verger o poeta  da Bahia. Suas fotos são poesia visual. No livro de Verger, o recorte do olhar transita desde as belas vistas tomadas do mar, do conjunto urbano de Salvador, da paisagem do interior às figuras dos homens e mulheres que vivem a cultura local. Na verdade, são mostradas duas culturas, uma ligada à cidade de Salvador, à região da Bahia de Todos os Santos, ao recôncavo, região historicamente ligada à cana-de-açúcar, e outra ligada aos sertões interiores, região historicamente ligada à pecuária. No sertão, o homem mestiço com forte traço indígena, o semi-árido do sertanejo que exibe seu passado pastoril, indicado nas fotos de bois. Na região do recôncavo, a cultura predominantemente litorânea que tem como núcleo urbano a tradicional cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, cidade tão centralizadora a ponto do seu nome ser identificado com o da própria Bahia. Nessa região, toda uma especificidade cultural, com a presença forte do negro. São mostradas as características arquitetônicas e urbanas da cidade, seu casario barroco, seu traçado irregular, assim como características de uma cultura que se exibe nos corpos. Tanto no interior como na capital a pescaria para sobrevivência, pesca beira-rio e beira-mar. Verger sabe aproximar-se das coisas e captar a espontaneidade do popular. A experiência do olhar, a vivência antropológica, a intuição do artista, tudo converge para flagrar momentos. Há repetidas fotos mostrando o samba, mostrando o casario antigo, mostrando o mar, mostrando os bois, e percebe-se que são aspectos presentes e cotidianos  para as pessoas do lugar, que são não somente aspectos voltados ao externo, mas aspectos interiorizados pela cultura. Nota-se uma experimentação na busca de luz natural e na fixação instantânea da vida popular em sua espontaneidade. As cenas de rua são captadas pelo olhar atento de Verger, não são cenas montadas para a fotografia. Desprovida de preconceito, a câmera de Verger capta as mais variadas manifestações da cultura baiana fixando imagens do dia-a-dia do povo. Verger mostra o movimento das ruas e das pessoas e consegue preservar o lado espontâneo da cena. Seu olhar não afeta o sujeito fotografado na maioria das fotos. No livro, nota-se uma repetição da temática ligada às águas. A capacidade de perceber o mundo na sua plasticidade e fugacidade é efeito sensível da experiência que a foto retém e comunica. A luminosidade da água, a unidade da luz, a percepção sensorial e a perecibilidade do instante são efeitos que tendem a transportar o espectador para uma atitude contemplativa e evocativa. O que a foto capta evapora rápido, foge e decorre daí o encanto da detonação instantânea de um processo de recuperação e retenção da experiência. A foto não somente capta o passado mas o faz presente. A foto retém impressões visuais, temporais, de movimento, retém afetos.

Na investigação, o ensaio Dieux d’Afrique  foi  considerado um livro fundamental da obra do fotógrafo. O projeto do livro representou anos de trabalho para Verger, anos de um grande empenho em compreender e aproximar-se dos cultos religiosos do Golfo da África, cultos estes levados para a América pelos negros escravizados. O livro foi totalmente concebido por Verger, sendo sua mais audaciosa publicação até então. O livro traz 160 fotos de Verger acompanhadas de texto também escrito por ele. A tese central da pesquisa de Verger era a de que os cultos negros, presentes no Brasil, eram originários de uma região da África, a Costa dos Escravos.  Dieux d’Afrique marca o grande momento etnográfico de comprovação de tal tese. O livro vem assinado por Pierre Fátúmbí Verger. Fátúmbí, que significa renascido do Ifá, é o nome que Verger ganhou e adotou após sua iniciação como babalaô, em 1953 na África; aqui se tem um indício das transformações de Verger nesse período de elaboração de Dieux d’Afrique. É importante realçar que a maioria das fotos apresentadas no livro foram realizadas na África, sendo somente 33 feitas no Brasil. A maioria das fotos apresenta rituais públicos  e a ordem das fotos obedece a uma seqüência ritual do Candomblé. No ensaio, há fotos de grande impacto emocional formando um conjunto coeso e exaustivo.

As fotos requerem, para interpretá-las, conhecimento sobre os cultos aos orixás e vodus mas afetam também o espectador leigo que ignore esse universo. Alguns aspectos gerais merecem ser realçados. Tratam-se muitas vezes de fotos feitas em espaço público, fotos de cenas rituais, fotos seqüenciais, narrando um acontecimento ou ato cerimonial. As cerimônias públicas são caracterizadas por cantos e danças ao som de tambores e, principalmente, pela presença dos deuses que se encarnam nos corpos em transe dos adeptos. Muitas das fotos apresentam deuses em sua ação, possessão ou representação. Um aspecto importante, registrado nas fotos de Verger, é o papel forte do corpo na cultura apresentada. Em rituais sacrificiais, o corpo é um instrumento essencial. A fotografia de Verger conserva algo da fluidez do acontecimento, permitindo ao espectador ser atingido pelo efeito da cena mostrada.

De acordo com a análise feita sobre o resultado dos ensaios, em especial do Dieux d’Afrique,  pode-se pensar as relações existentes entre a fotografia e a etnografia na obra de Verger. Busca-se o que a fotografia do autor aportou de novo e original em termos de conhecimento sobre o homem e, principalmente, dentro das perguntas da investigação, trata-se de um questionamento sobre o seu olhar. A resposta dada por Verger, quanto a ser a fotografia uma prática artística ou uma prática científica, aponta para uma combinação singular. A maneira como ele fotografava poderia ser assimilada como uma prática artística, ao fazer souvenirs. Por outro lado, o uso dos resultados fotográficos como fontes de estudo e como documentos poderia remeter a uma prática científica. As incursões etnográficas de Verger têm como originalidade mostrar a cultura segundo um conceito não etnocêntrico, que abandona a escolha da cultura elevada, erudita ou elitista, inclusive ao compartilhar seus resultados com o Outro. Na situação de trabalho etnográfico, as imagens obtidas por Verger alcançaram qualidades evidentes, resultantes de uma experiência concentrada, do fotógrafo sozinho, no estrangeiro. Verger obteve fotos densas, segundo um rapport seguro, procurando descobrir a cultura alheia, chegando a conhecer a língua estrangeira e buscando compreender as ações e contextos em termos da cultura local.

De modo ambivalente, Verger produziu souvenirs e documentos fotográficos. Por um lado, suas fotos afirmam a espontaneidade do encontro com o mundo alheio, sem uma determinação racional prévia. Eticamente, há na postura de Verger um respeito pelo outro, ao tomar partido das surpresas que ocorrem no momento do encontro. Verger confessa que muitas vezes fotografou sem saber exatamente o porquê da escolha do momento de clicar, possibilitando a presença do acaso e do imprevisto em sua obra. Mas, paradoxalmente, por outro lado, a relação de Verger com a fotografia tem muito do saber etnográfico, científico, esclarecido  e  esclarecedor. Verger não era um etnográfo que lançou mão da fotografia. Sua relação com a fotografia é anterior ao seu trabalho como antropólogo. A fotografia para ele não é motivada pelo saber científico. Porém, ele já era reconhecido como um etnográfo mesmo antes de se colocar como estudioso da área. Reconhecia o papel de documento das fotografias e, informalmente, já atuava como antropólogo visual, muito antes de receber o título acadêmico e da disciplina existir como tal. Verger optou pela relação íntima e  prolongada com o universo cultural a ser fotografado. Mas ele não pretendia um domínio total sobre o modo de expressão, abrindo um espaço onde cabia a espontaneidade do outro, um espaço para o novo, no sentido de não conhecido. Recusando-se a comandar as cenas, evitando uma postura normativa, Verger possibilitava a presença do acaso e do imprevisto em sua obra. Desse modo, Verger superou de antemão a postura do antropólogo convencional à procura de documentos culturais. Produziu exposições individuais e participou de diversas exposições coletivas, algumas de repercussão internacional. Com tais apresentações, evidenciava-se o caráter estético de sua obra fotográfica, mostrada segundo uma concepção distinta da de reportagem e de documentação museológica. Sem se assumir como um artista, em uma atitude de rebeldia contra o academicismo, não se assumia também simplesmente como repórter ou como um estudioso:  assumia-se como fotógrafo.

Baseada na análise do percurso e da obra de Pierre Verger, a investigação caminhou, numa espécie de conclusão, para uma reflexão sobre uma importante característica identificadora de sua obra, sobre o que foi denominado, tomando a expressão de seu amigo Alfred Métraux, “la toche Verger”. Uma característica pautada principalmente na maneira de se aproximar do objeto, contemplá-lo, suportar o afeto e a diferença e, de acordo com a interação, colher a imagem. Primeiramente, o toque Verger, foi estudado como punctum, conceito derivado da teoria de Roland Barthes, quer dizer, pode ser entendido como uma maneira característica e singular que equaciona a situação de fotografar, ou ainda, uma maneira de olhar e sustentar o olhar. Uma segunda possibilidade de entender o toque Verger foi encará-lo como impulso documental. No momento do clique Verger era movido por uma vontade de saber e apropriar conteúdos,  um impulso documental, pré-logico e intuitivo, de chegar a algo do objeto que tanto atrai o seu olhar. Em terceiro lugar, o toque Verger se afirma e perdura como afeto e conexão. Por fim, o toque  engloba uma construção singular pelo estilo individual do autor, entendendo por estilo a atitude do fotógrafo diante do mundo, seu olhar, sua percepção e sua construção de um sistema de equivalências estéticas ou semânticas do mundo.

Fazendo-se uma leitura formal do problema, tentando sublinhar efeitos recorrentes, foi possível traçar um painel com as marcas mais importantes do toque de Verger. Olhando-se retrospectivamente a obra de Verger, destacam-se, a grosso modo, dois grupos de fotos. Um em que aparecem pessoas como elemento principal, outro em que aparecem arquitetura e paisagens urbanas ou naturais. O toque Verger está mais relacionado com as fotos em que as pessoas protagonizam as imagens. As fotos reconhecidas como de Verger, as fotos em que se reconhece a sua assinatura, são aquelas em que aparecem as pessoas como centro de atenção, seja o caso de retratos, seja o caso de grupos. A originalidade de Verger consiste em olhar a periferia, com respeito, com a ousadia de fotografar sem preconceito, com interesse pelo não encenado ou previsto, compondo imagens tocadas de poesia visual. Antes de tudo, Verger prezava o contato com pessoas dotadas de experiências de vida, diferentes da do ocidental, do parisiense renitente. Buscava conseguir o bate-papo, as fotos eram para provocar o encontro. Agüentava ficar sozinho, apesar das dificuldades. Com senso de humor e curiosidade, gostava de documentar os personagens sociais. Fazia da festa um artifício para encontrar a abertura adequada ao contato. Não temia temas como a religião e a morte. Encarava a imagem pela via do erotismo, como bem notou Georges Bataille. Tinha a emoção  como ponto de partida e a fotografia como aventura.

As fotos de Verger não privilegiavam o requinte visual, nem objetos de beleza canônica. Ao contrário, estavam mais perto do que era considerado periférico, insignificante e mesmo disforme. Eram documentos que restituíam o real como ele é, não metaforizado, não idealizado. Um documento, dito de outra maneira, não inventado, maquiado ou encenado. É importante compreender as técnicas de que o fotógrafo lançou mão como forma de aproximação, como um observador atento que necessita de cautela e ousadia, senso de iniciativa e precisão, capacidade de perceber o Outro. O fotógrafo correu os riscos de quem interagia com os acontecimentos. Era capaz de reagir dessa ou daquela forma, dependendo do que as circunstâncias solicitassem, de incorporar as sugestões do instante e da paisagem. A foto estabelecia um contato, uma aproximação sensorial, um toque direto. Verger se dilui na cena, se torna invisível para melhor personalizar a sua fotografia. A atitude de ceder ao acontecimento é uma forma de improvisar notavelmente complexa pela transparência da fotografia. É uma estratégia de valorizar o Outro, um gesto de cortesia, e também uma forma de conhecimento. A dificuldade é que a fotografia tem que sustentar-se por si mesma, mantendo o conjunto de afetos e percepções experimentados, os quais devem ser captados e conservados nelas. A imagem é expressiva se logra conservar o afeto e o potencializa. Verger reconhece que o mistério da fotografia radica em preservar uma emoção que possa ser comunicada ao espectador. Em suas palavras:

“Le miracle est que cette émotion ressentie en face d’une photographie muette, témoin d’un fait fixé par un instantané, puisse être ressentie spontanément par d’autres, révélant un fonds commun de sensibilité souvent inexprimée, mais révélatrice de sentiments profonds, souvent ignorés.”