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Verger: uma vida em muitos planos

A maioria das pessoas que conheceu Pierre Verger lembra-se imediatamente de suas atividades como fotógrafo, tendo percorrido inúmeros países a partir de 1932 e publicado uma boa parte das suas fotos em livros que se tornaram clássicos da antropologia visual. Outros conhecem as publicações com as quais ele entra no mundo acadêmico, inclusive conferindo ao autodidata Verger o título de doutor em Estudos Africanos (3e cycle) pela Sorbonne, em Paris, pela sua publicação Flux et reflux de la traite des esclaves entre le Golfe du Bénin et Bahia de Todos os Santos, du dix-septieme au dix-neuvieme siècle (Paris, Mouton, 1968). No Brasil Verger se tornou conhecido como autor de coletâneas fotográficas e livros - clássicos dos estudos das culturas afro-brasileiras - a partir dos anos 80, graças aos esforços da editora Corrupio. Porém, poucas pessoas, além de alguns colegas e amigos mais próximos, sabem quais outros textos, livros e trabalhos existem e o que de fato constitui a obra de Verger, hoje em dia hospedada na Fundação Pierre Verger (FPV) [3] ,  instituída por ele em 1986, quase dez anos antes de sua morte. Certamente não é demais designar a obra de Verger de multifacetada, levando em conta a quantidade de material, a abrangência dos assuntos abordados e dos lugares onde foi publicada, sempre baseada em seus contatos e suas convivências com as mais diversas culturas. De certa forma, o “inventário” de sua obra mostra-se atrelado à memória de sua vida. As suas publicações surgem em todos os lugares por onde ele passou e nas mais diversas línguas.

Muitos dos seus textos foram publicados, integralmente ou em parte, em mais de uma língua, dirigindo-se a públicos bem diversos. Durante a sua vida fica patente o deslocamento de uma atuação exclusiva como fotógrafo para uma de escritor, que mesmo não fotografando mais no final de sua vida - ele deixou de fotografar no final dos anos 70, após 50 anos de fotografia -,  continuava a montar exposições e ilustrar os seus textos e os de colegas e amigos com suas fotos.

A partir dos 30 anos Verger, que vinha de uma família burguesa [4] começou a fotografar e viajar, acompanhado por sua máquina Rolleiflex. Ele viajava usando todos os meios de transporte e de locomoção: a pé, pela Córsega, de bicicleta, pela França, Itália e Espanha, de camelo pelo Saara, como também a bordo de cargueiros de bananas e outras mercadorias, de trem, ônibus e finalmente também de avião pelo resto do mundo. A sua primeira viagem mais longa o levou, em 1933, para a Polinésia. A partir desta viagem ele passou a viver de suas fotografias, colaborando com os mais diversos jornais: para o Paris Soir ele fez, em 1934, junto com o escritor Marc Chadourne e o jornalista Jules Sauerwein, uma viagem ao redor do mundo, passando pelos Estados Unidos, Japão, China e outros países; no Daily Mirror (Londres) encontram-se entre 1935/36 uma série de fotografias com curtas legendas, especialmente da Indochina, assinadas por Mr. Lensman, um pseudônimo de Verger; para a agência Alliance Photo ele fez a cobertura fotográfica da exposição mundial de Paris, em 1937; para a revista Life ele viajou em 1937 como correspondente de guerra para a China; e para Match (Londres) ele fez uma reportagem sobre o Vaticano, em 1938. Em 1941-42, durante a sua estadia na Argentina, trabalhou para Argentina Libre, um jornal tido como anarquista por alguns, difícil de se encontrar em bibliotecas ou instituições oficiais, pelo fato de provavelmente ter sido ligado à oposição e para El Mundo Argentino, uma revista com fotografias. [5] Mais tarde colaborou no Brasil com O Cruzeiro, entre 1946-1951, e a partir de um segundo contrato, entre 1954-1957, com O Cruzeiro Internacional. Além disso trabalhou para diversos outros jornais ou revistas com os quais não tinha nenhum contrato específico ou de exclusividade, como por exemplo o Unesco Courier, que publica fotos de Verger em 1959. Ligado à fotografia, ele tinha outras atividades como encarregado do laboratório fotográfico do Musée de l’Ethnographie (Trocadero), mais tarde Musée de l’Homme, em Paris, entre 1935-1937, e como colaborador do Museu Nacional, em Lima, entre 1942-1946.

Nos anos em que ele teve uma maior convivência em Paris, especialmente na década de 30, e durante suas esporádicas visitas posteriores, ele fazia parte de um círculo de amizades que incluía pessoas de diversos interesses, incluindo antropólogos, fotógrafos, escritores e artistas de modo geral. Podemos citar, entre muitos outros: Jaques Prevért, escritor; Maurice Baquet, violoncelista; Pierre Bouché, fotógrafo; Marcel Duhamel, escritor e editor. Este grupo inicial, bastante heterogêneo, tinha uma certa aproximação com o surrealismo e com outros estilos alternativos de vida, representando valores que Verger procurava e que faziam com que ele se abrisse para outras áreas de interesses. [6] Talvez este grupo tivesse até influenciado o seu estilo pessoal de fotografia, que ressalta o aparentemente normal do cotidiano como diferente e especial. Mais tarde, outras pessoas em Paris fizeram parte de seu círculo de amizades, como Alfred Métraux, Gilbert Rouget, Roger Bastide, Michel Leiris, André Schaeffner, Jean Rouch, Marcel Griaule, George Bataille e Paul Rivet e muitos outros. Com outros conterrâneos contemporâneos ele teve menos contato, como Claude Levi-Strauss e Jean Paul Sartre. Especialmente com Métraux, Bastide e Rouget ele estabeleceria amizades duradouras, até a morte, incluindo troca de correspondências que se estenderam de 1947/48 até a morte de Métraux em 1963 e de Bastide em 1974. [7]

A lista dos colegas que incluiu fotos de Verger nas suas publicações é longa, além disso diversos livros coletivos incluem fotos de Verger, entre as de diversos outros fotógrafos, muitas vezes através de agências de fotografia das quais Verger fazia parte. [8] Algumas dessas publicações com fotos de Verger devem-se ao projeto de pesquisa da UNESCO sobre o preconceito racial no Brasil, dentro da Missão da Columbia University, idealizado e iniciado por Métraux no início dos anos 50. Além de Thales de Azevedo, participaram do projeto Charles Wagley, Marvin Harris, W. H. Hutchinson e Ben Zimmerman. Eles realizaram pesquisas no interior da Bahia, orientados por Métraux, que veio para o Brasil na ocasião. Alguns dos trabalhos tiveram a participação de Verger como fotógrafo da missão, em 1951.

 Verger fez parte de duas agências fotográficas – a Alliance Photo (1934-1940) e a A.D.E.P. (1943?-1958), além de ter colaborado também com a MAGNUM, embora não se saiba ainda a que nível. No tempo em que as três agências funcionavam em Paris, muitas das suas fotos que foram negociadas via uma dessas agências, foram publicadas em tantos lugares, que ultrapassam o conhecimento do próprio Verger. Algumas revistas que publicaram fotos suas são, por exemplo: Voilá (1937/38), Picture Post e Life, nos anos 30, e Regards, nos anos 40. [9]

Após ter vivido, entre 1932 e 1946, exclusivamente das suas fotografias, viajando incessantemente pelo mundo “le pied à l’étrier”, “com o pé no estribo”, expressão criada por Métraux e Verger nas suas correspondências que mais tarde tornou-se título de livro (Le Pied à l’étrier, Paris, 1993), ele veio conhecer a Bahia,  em 5 de agosto de 1946, um dos momentos chave em sua vida. Inicia-se um longo período em que ele estabelece um círculo de amizades e de trabalho, do qual fazem parte, entre muitos outros, Carybé, Vivaldo da Costa Lima, Waldeloir Rego, Odorico Tavares, Godofredo Filho, Cid Teixeira, Carlos Ott, Thales de Azevedo, Jorge Amado, Mário Cravo, além de um número incontável de pessoas ligadas ao candomblé que futuramente acompanhariam a sua vida. [10]

A gradativa descoberta da Bahia negra, oferece-lhe a possibilidade de estabelecer novos laços com a África Ocidental, que já conhecera durante a sua primeira viagem àquele continente em 1935/36, sem que ele tivesse percebido a sua particularidade com tanta clareza. Só a partir do seu contato com a Bahia ele descobre a importância da África e as muitas ligações que existem entre ela e o Brasil. No final de 1948, após já ter conhecido o xangô em Recife e o culto aos voduns na Casa das Minas, em São Luís do Maranhão, ele entra no mundo do candomblé, faz amizade com Mãe Senhora, sua futura Mãe de Santo, que ao saber de sua iminente viagem ao outro lado do Atlântico consagra a sua cabeça a Xangô por descobrir nele um mensageiro de sua cultura entre a Bahia e a África. [11] Ele viaja para a África com uma  bolsa de estudos e pesquisa, oferecida por Theodor Monod, diretor do IFAN. Este fato constitui o início de sua nova tarefa como observador etnográfico que começa a escrever as suas observações e experiências, a serem publicadas a partir de 1951. Logo em seguida, em Ketu (Daomé), é iniciado como babalaô (1953), sacerdote de Ifá o dono do destino e da adivinhação. Ele deixa de ser Pierre Verger e se torna Fatumbi, “renascido pelo Ifá”. Em uma carta dirigida a Métraux lemos:

Encontrei sua carta no retorno de Kétou, onde eu cheguei Pierre Verger e de onde voltei FATUMBI, o que significa: ‘Ifá me entregou ao mundo’. É por demais presunçoso pois se em meu comportamento resta alguma coisa de infantil isto torna tudo natural, e além disso quando você tem 70 anos, eu terei não mais que 20. Ademais rompi assim as últimas ligações com o que ainda tinha de minha família e, se mais tarde me acontecer de mentir a um profano, terei mesmo mais restrição mental a fazer e lhe declarar: ‘Se isto não é verdade, que eu não me chame mais Pierre Verger. [12]

Este fato intensifica o seu contato com, e seu interesse pela cultura africana. Após algumas publicações menores publica Dieux d’Afrique (Paris, 1954), a sua primeira obra sobre a cultura iorubá. A partir desta data a sua produção não pára mais e Verger começa a se dedicar a alguns assuntos favoritos, que caracterizariam suas publicações até o final de sua vida. É importante ressaltar que a sua obra escrita se concentra no universo das culturas e religiões afro-americanas, especialmente o contato entre a África Ocidental e o Brasil, incluindo às vezes outros países do Novo Mundo, como Cuba, Haiti, Suriname e Guiana Francesa.

Verger certamente tornou-se um dos maiores conhecedores do universo da cultura iorubá, graças ao seu desejo de conhecer, movido por uma imensa vontade de ser livre de compromissos desnecessários, e pela curiosidade de observar e entender as múltiplas facetas do ser humano. De fato, a chave para a sua obra se encontra no simples fato de sempre ter sentido um fascínio pelo ser humano e o humano em cada ser, pelo indivíduo e seu lado individual. Gilberto Freyre descreve a personalidade de Verger: baseando-se inicialmente na avaliação de Theodor Monod, que observa em Verger “um dom excepcional para os contatos humanos...” Freyre ressalta

também esta outra singularidade: a de saber juntar a simpatia pelos assuntos que estuda, a capacidade de considerá-los com a distância necessária à objetividade científica. Ao que se deve acrescentar ainda outra condição, rara em etnólogos e antropólogos profissionais: a de ser Pierre Verger um homem livre. Livre de compromissos rigidamente acadêmicos. Livre de ligações burocraticamente universitárias. Livre de obrigações para com esta ou aquela ortodoxia científica. Daí a frescura de suas páginas de divulgador e, às vezes, revelador de culturas exóticas. Daí o seu encanto artístico que, nas suas fotografias, se junta à exatidão - exatidão que lhes dá categoria de documentos científicos - sem os prejudicar ou comprometer. [13]

Em outros momentos Verger procura e até analisa os aspectos formadores deste indivíduo, com a sua constante luta entre o inato, muitas vezes inconsciente e escondido ou oprimido, e o culturalmente aprendido e/ou induzido. “Eu acreditava que o homem se tornava aquilo que o seu meio o destinava a ser, porém à medida em que envelhecia, me apercebia que cada homem possuía uma sensibilidade e um caráter inatos, que permaneceriam ligados a ele por toda a vida”. [14]   A sua busca do natural, do inato, do não transformado por regras sociais às vezes questionáveis, deturpado pela educação e/ou a instituição escola, faz Fatumbi designar o candomblé, depois de ter visto e observado muitas outras religiões durante as suas viagens, como uma religião de exaltação da personalidade verdadeira do indivíduo. Uma das questões intimamente ligadas às mencionadas é a questão do estado de transe, fundamental em tantas religiões, que diversas vezes foi abordada e estudada por Verger.

 “Mas o que acontece é que a gente não é formado pela educação. A gente, talvez, é deformado pela educação. Então, se a gente vem contra, isso fica no inconsciente, e esse inconsciente só pode dar a possibilidade de se afirmar quando o consciente é abolido. Então, quando se diz que as religiões são religiões de possessões, a palavra é completamente falsa. Não são crises de possessão. São crises de expressão do ser profundo que pode se expressar. O orixá é parte inconsciente reprimida da pessoa que pode se expressar no momento em que a parte consciente está abafada, apagada. É uma possibilidade de se expressar, de expressar sua natureza reprimida pela vida. É uma coisa excelente.” [15]

Esta questão certamente foi o motivo e o motor para muitas das suas pesquisas. Os enigmas em torno do caráter e da personalidade do ser humano levam o antropólogo curioso a uma busca de compreensão do outro, para compreender a si mesmo. Uma resposta para esta questão foi procurada por Verger até o final de sua vida, como pude observar a partir do início de 1988, quando tive a oportunidade de  trabalhar com ele, num convívio diário. Muitas destas conversas transformaram-se em reflexões e anotações que diversas vezes delinearam os assuntos tratados. E, de fato, uma das questões que mais ocupava Verger foi este aspecto entre o inato e o aprendido, uma questão que foi básica na busca do seu próprio caminho de vida.

Com as suas viagens constantes para África, Fatumbi realmente tornou-se o mensageiro - aproveitou este termo para um dos seus últimos álbuns fotográficos, Le Messager (Paris, 1993) - entre os dois lados do Atlântico, renovando e inovando, criando e recriando os contatos humanos, os laços humanos, numa época em que, por falta de contatos comerciais de toda espécie, as ligações tinham se tornado menos freqüentes e menos fundamentais do que nos séculos anteriores. [16] Nem sempre esta sua atitude de unir foi vista com bons olhos. Verger sempre contava com um certo tom de amusement, de divertimento, que o seu colega antropólogo norteamericano Melville Herskovits mostrou-se bastante contrariado com a ação “conciliadora” de Verger, dizendo que este tinha destruído a situação de “laboratório natural” encontrado por ele, Herskovits, na Bahia. Neste laboratório Herskovits queria estudar, segundo o relato pessoal de Verger, os efeitos da aculturação ou enculturação, ocorrido durante os cerca de 50 anos que a cultura afro-brasileira havia ficado sem contato direto com a África. Este suposto “laboratório”, ideal para estudar as manifestações africanas em terras brasileiras, foi encontrado pelo antropólogo quando ele veio em 1941-42 ao Brasil. Poucos anos depois, a partir de 1946, Verger começou a realizar as suas pesquisas nos dois lados do Atlântico, refazendo os contatos, temporariamente adormecidos após a abolição, reaproximando famílias, rituais e fatos. [17] O fato relatado caracteriza um dos traços mais importantes da obra e da filosofia de vida de Verger: ele queria a união, a compreensão mútua e supra-étnica, em vez de procurar ou ressaltar o contrário. Como ele diz em Os Libertos: “Na Bahia encontra-se o que a gente tem carinhosamente em comum e não agressivamente o que tem de diferente”. [18]

Entre os temas pesquisados e abordados por Verger destacam-se alguns principais, ressaltados por ele mesmo em “Titre e Travaux”, uma espécie de memorial a ser apresentado regularmente às fontes financiadoras francesas como por exemplo o CNRS, instituição na qual Verger entrou em 1962 como chargé de pesquisa, quatro dias antes de alcançar o limite de idade de ingresso. Mais tarde chegou a ser diretor de pesquisa durante os anos 1971-72, novamente atingindo a idade limite para o exercício deste cargo. Ele ficou com este cargo porque Gilbert Rouget, etnomusicólogo, desistiu de sua candidatura em prol da de seu amigo Fatumbi. Embora na lista apresentada por Verger faltem todas as publicações a partir de 1974, as áreas principais de sua pesquisa são, segundo ele mesmo: 1) trabalhos sobre influências africanas no Brasil e as brasileiras na África; 2) história das relações do Golfo do Benin com a Bahia; 3) trabalhos de caráter sociológico; 4) trabalhos sobre as tradicionais religiões africanas; 5) tradições orais; 6) adivinhação; e 7) etnobotânica.

Com base no total das publicações pesquisadas até o presente momento, talvez possamos rearrumar esta lista, conforme a seqüência dos assuntos abordados, aumentando-a em certos aspectos, da seguinte forma: 1) documentação fotográfica; 2) história das relações entre a África e o Brasil - influências mútuas; 3) artes; 4) religiões tradicionais africanas e brasileiras, incluindo aspectos de transe; 5) trabalhos de caráter sociológico; 6) tradições orais, processos de transmissão oral, literatura oral; 7) adivinhação; 8) etnobotânica; e 9) publicações com teor autobiográfico.

Nem sempre é possível incluir algumas de suas publicações apenas num dos grupos mencionados. Isto pode ser explicado pelo grau de integração dos diversos aspectos abordados e presentes na própria cultura africana onde, como também em diversas outras, para falar de religião, há que se falar de música, de dança, arte, transmissão oral, aspectos que só na concepção européia são dissociados. Em muitas culturas os mais diversos aspectos culturais são intrinsecamente interligados, formando uma unidade vivencial que às vezes é difícil ser entendido por pessoas fora deste contexto cultural. Por causa desta dificuldade de limitar os diversos textos tematicamente, tentaremos nos deixar levar por um fluxo mais natural, para tentar apresentar especialmente as publicações menos conhecidas, embora o objetivo principal seja uma apresentação resumida de toda sua obra.

É importante ressaltar que praticamente toda a obra escrita de Verger (excluindo as publicações de álbuns e livros fotográficos) refere-se ao contexto da cultura iorubá, tanto na Nigéria e no Benin, quanto na diáspora nas Américas, coincidindo com a mencionada fase a partir de 1946, quando ele começa definir o seu interesse pelo assunto. Um dos motivos de trabalhar com tanta dedicação e até obsessão pela cultura iorubá, é mencionado por Ulli Beier, um dos amigos do tempo  que Verger passou na África: “juntar, observar, escrever para dar um corpo a este conhecimento vastíssimo, para as culturas letradas darem mais importância. Igual às outras religiões que tem o seu livro sagrado para serem respeitadas”. [19] Foi esta vontade de documentar a riqueza da cultura iorubá, para que ela ganhasse o reconhecimento merecido, que fez Verger ressaltar a sua estrutura religiosa diferente das grandes religiões “reveladas”, como ele costumava chamar as religiões transmitidas pela escrita. Uma religião que no mínimo poderia possibilitar uma reflexão, dentro de uma visão menos preconceituosa, facilitando uma aproximação humana das diversas culturas e religiões. Resumindo, podemos observar nele duas atitudes e posturas que muitas vezes se misturam e confundem. Ele era o pesquisador minucioso e paciente, sempre voltado para o ser humano, e ao mesmo tempo o mensageiro que se incumbia especialmente de manter vivo o contato entre os dois lados do Atlântico.

Fatumbi, em princípio, não era uma pessoa religiosa, pelo menos à primeira vista, nem um colecionador de arte ou de qualquer objeto, nem um pesquisador voltado para a aplicação de teorias. O seu interesse principal eram as pessoas, na sua dimensão histórica e seu contexto sócio-cultural, que criavam os objetos de arte, utilizados na sua vida cotidiana e sua religião, e a dignidade que eles ganhavam a partir de sua religião, motivo que ele sempre ressaltava quando falava sobre o candomblé baiano. [20] Eram as pessoas em si e não os seus bens materiais que tinham importância para ele. Não foi por acaso que Verger escolheu, em 1960, quando ele finalmente fixou a sua residência na Bahia, uma casa modesta na Vila América, no Alto do Corrupio, para morar até o final de sua vida. [21 ] Algo essencial em sua vida certamente foi a convicção de que queria ficar livre de qualquer coisa desnecessária, especialmente objetos materiais. Fato este que, mais jovem, o atraiu para o budismo, quando passou pelo Cambodja. A abdicação de todos os bens parecia-lhe atraente, para poder viver livre - espiritualmente e materialmente. Porém, como descobrira mais tarde, era uma renuncia interesseira porque pretendia-se desta forma conseguir uma melhor reincarnação. Então, antes de se aproximar mais, ele chegou à conclusão que a filosofia do budismo não era aquilo que estava procurando na sua vida. Tal desencanto e decepção não ocorreram em sua relação com a religião iorubá. Ao contrário, ela se tornou tão importante que fez com ele vivesse durante muitos anos na África e alimentasse as suas pesquisas durante décadas.

Muitos dos seus textos viraram “clássicos”, livros de cabeceira, como Dieux, Notes, Orixás, especialmente aqueles vinculados à religião afro-brasileira e aspectos históricos, enquanto muitos outros são até hoje completamente desconhecidos, devido ao difícil acesso. São estes textos que queremos apresentar para torná-los mais conhecidos. Escolhemos alguns dos textos mais significativos de todos os grupos mencionados anteriormente, apresentando-os pelo menos de forma resumida. Infelizmente não vai ser possível falar sobre todos, nem tampouco seria indicado limitar a abordagem a apenas um dos assuntos temáticos. Ao mesmo tempo, nos limitaremos aos textos publicados, excluindo os apresentados em congressos ainda inéditos. [22] Infelizmente não existem todos os textos mencionados por ele mesmo no acervo da Fundação Pierre Verger, porém, existem, pelo menos a respeito de alguns, indicações do próprio Verger que permitem uma contextualização ou abordagem. [23] Com alguns colegas chegou a desenvolver pesquisas em conjunto, como com Roger Bastide e Gilbert Rouget, e Alexandre Adandé, existindo talvez ainda outros textos em parceria ainda não encontrados. Mesmo assim, a grande maioria das suas publicações é o resultado de suas incansáveis buscas e pesquisas pessoais.

 


[3] A Fundação Pierre Verger tem como objetivo preservar o seu acervo (biblioteca, acervo fotográfico com 63 000 negativos, gravações sonoras, anotações, manuscritos e outros), continuar com pesquisas e abrir o acervo, que continua na casa onde Verger morava, para pessoas interessadas.

[4] É pouco conhecido que o irmão de Verger, boêmio que morreu jovem num acidente de carro, foi retratado num romance da época Dans le monde où l’on s’abuse de Jean Fayard, publicado em Paris em 1925. O fim trágico de seu irmão fez Verger refletir até a sua morte a respeito de certos estilos de vida e talvez tenha influenciado também a escolha de seu próprio estilo.

[5] Durante a estadia na Argentina Verger teve bastante contato com o sociólogo francês Roger Caillois, que fundou, junto com Georges Bataille e Michel Leiris, em 1937, o Collège de Sociologie, que foi importante para a formação de Leiris. Durante sua estadia na Argentina Caillois fundou também uma revista literária Les lettres françaises para que escritores franceses exilados nas Américas tivessem um orgão que publicasse as suas obras.

[6] Verger sempre ressaltava a importância que o bale negre, na rua Blomet, com o seu público tão diferente, teve para ele e todos os seus amigos da época, incluindo Alfred Métraux.

[7] A correspondência com Métraux já foi publicada, com Bastide encontra-se em fase preparatória de publicação e com Rouget ainda não foi publicada. Da mesma forma diversas outras correspondências com amigos e colegas aguardam alguma avaliação e análise para que possam futuramente ser publicadas.

[8]   Serão citados apenas alguns dos trabalhos publicados com fotos de Verger como: Alfred Métraux, Haiti: La Terre, les hommes et les Dieux. Neuchâtel, A la Baconnière,1957; Roger Bastide, “Variations autour de la porte baroque”, Habitat, Revista de Artes no Brasil, São Paulo, (1951), pp.53-54; “Une fête des Ignames neuves à Pobé”, Revista de Ethnografia, Porto, no.18, (1968), pp. 311-332; Lídia Cabrera, La Sociedad secreta Abakuá, La Habana: Ediciones C.R.1958; Gilbert Rouget, Un roi africaine et as musique de cour. Paris: CNRS Editions, 1996; René Ribeiro, Cultos afrobrasileiros do Recife: Um estudo de ajustamento social. Boletim do Instituto Joaquim Nabuco, Recife, 1952; Thales de Azevedo, Les élites de couleur dans une ville brésilienne. Paris, UNESCO, 1953; Charles Wagley, Race and class in Rural Brazil, Paris, UNESCO, 1952; Darwin Brandão, A cozinha bahaina, Bahia, Livraria Universitária, 1948 (1ª ed.); George Bataille, L’erotisme, Paris, Les Éditions de Minuit, 1957; Denise Palme, Paroures Africaines. Paris, Hachette, 1956; Gabrielle Bertrand, Michel Leiris e outros mais. Livros coletivos com fotos de Verger são p.ex.: Jean- Louis Vaudoyer, Italie des Alpes a Sienne. Paris, Paul Hartmann, 1936, Maurice Legendre, En Espagne. Paris, Paul Hartmann, 1951. George Duhamel, Le Japon entre la tradition et l’avenir. Paris, Mercure de France, 1953. Claude Roy, La Chine dans un Mirror. Lausanne, Éditions Clairefontaine, 1953.

[9] Além das fotos negociadas pelas Agências existem ainda acervos com fotos de Verger no Musée de l’Homme e no Institut Fondamental d’Áfrique Noire - IFAN. A publicação em homenagem aos 50 anos da Alliance Photo dá todas as indicações de revistas e jornais que publicaram fotos desta agência.(Alliance Photo, Paris, Mairie de Paris, Bibliotheque Historique de la Ville de Paris, 1988/89).

[10] É praticamente impossível falar de todas pessoas que Fatumbi conheceu. Em cada país ele estabeleceu laços de amizade que, muitas vezes, duraram décadas. Não se deve esquecer que este texto é apenas uma bibliografia com alguns traços biográficos, não uma biografia. As pessoas que por ventura não foram mencionadas devem desculpar este fato. Trata-se apenas de uma questão técnica e de limitação de espaço.

[11] Mais tarde ele receberá no Ilè Axé Opó Afonjá o título de Oju Obá, além de muitos outros cargos e postos em diversas casas de candomblé na Bahia e na África, tantos que nem todos podem ser citados aqui, sem falar de outras condecorações e homenagens que ele recebeu em diversos lugares e  instituições durante os muitos anos de sua vida.

[12] Verger, Le Pied a l’étrier, pp.176-177.

[13] Citado conforme um texto sem data exata de 1955, publicado em O Cruzeiro, e arquivado no acervo da Fundação Pierre Verger como recorte de jornal.

[14] “Algumas datas na vida de Pierre Verger”, Alteridades, ano II, nº 2, (Salvador, 1996), p. 106.

[15] “Pierre Verger. Entrevista”, Revista Exu, nº 5, (Salvador, 1988), p.7.

[16]   Neste  contexto precisa ser lembrado que Verger foi o cicerone para muitos dos seus amigos e colegas da Bahia, da França e de outros lugares, recebendo-os na África, mostrando as suas particularidades e facilitando contatos. Devem ser incluído neste grupo Bastide e Métraux nos anos 50, como também Vivaldo da Costa Lima, Júlio Braga e Deoscoredes Maximiliano dos Santos com Juana Elbein dos Santos, além de Antônio Olinto e Zora Seljan nos anos 60 e o pai-de-santo Balbino Daniel de Paula, Arlete Soares e Cida Nóbrega nos anos 70 entre outros. Além destes colegas brasileiros que foram para a África, também vieram diversos colegas e amigos africanos para o Brasil como Olabiyi Yai e diversos reis iorubás.

[17] Apesar destas diferenças de enfoque metodológico, eles tiveram bastante contato, e até existia o projeto de um livro a ser publicado por Herskovits, com fotos de Verger, que por razões desconhecidas não chegou a ser realizado.

[18] Verger, Os libertos, Salvador, Corrupio, 1992, p.94.

[19] Ulli Beier, “Erinnerungen an Pierre Fatumbi Verger”, In Überschreitungen. Trickster Jahrbuch Bd.1, (Wuppertal, Perter Hammer Verlag, 1997), p.160.

[20]   Existem diversas entrevistas nas quais ele aborda particularidades e aspectos fundamentais do que o candomblé representava para ele.

[21] Antes ele vivera, a partir do ano de 1946, no Chile Hotel, num modesto quarto debaixo do telhado, porém, com uma vista maravilhosa, como sempre ressaltava, e depois, nos anos 50, num quartinho no Caminho Novo do Taboão. Este último serviu de inspiração para a descrição da morada do personagem  Quincas Berro d’Água, de Jorge Amado.

[22] Tampouco vamos citar as inúmeras resenhas e introduções para livros.

[23] Alguns destes textos inexistentes no acervo da Fundação, comentados eventualmente nas notas do texto, serão ressaltados pelo sinal *, até como indicação para  pessoas que por ventura tenham acesso a eles e possam fornecer uma cópia para o acervo da Fundação.